sexta-feira, 30 de abril de 2010

Pedra preciosa

Tomou por marido o Poeta para salvá-lo de destino cruel.
Tomou pela mão o Soldado e o tirou dos braços de sua amada.
Tomou o caminho do Arcebispo e desviou seus olhos do Céu.
Tomou o coração às mãos e não soube que caminho seguir. Seu destino não a prendia ali, a levava além, ao horizonte, ao alto. O alto da Torre.
Seu coração a guiou até as Três Marias.
O Tocador de Sinos a observava pelos vitrais da Catedral, desde que cruzara as portas do templo. Ele não esperava olhá-la nos olhos, tão de perto, sentir o calor de sua respiração a o macio de sua pele em seus braços.
A bela Cigana não pôde conter o espanto ao mirar, através de um embaçado espelho, aquela figura disforme olhando para ela. Cobriu a boca com as mãos e abafou um grito de pavor. Se aproximou devagar enquanto ele se escondia nas trevas. Acariciou-lhe o rosto com as pontas dos dedos. Ele se assustou e a segurou pelos braços. Ela olhou dentro dos olhos dele. E se amaram através daquele olhar.
Se entregaram a um abraço terno e intenso. E a noite seguiu, silenciosa.


Acordou sozinha, coberta por pétalas de girassóis. Vozes graves e passos pesados a despertaram do sonho para a realidade que vivia. Procuravam por ela.
Com o coração na boca, pôs suas vestes e desceu correndo as escadarias da Torre. Não sem antes olhar, mais uma vez, para o sol que iluminava a Igreja através dos magníficos vitrais.
A trupe com que viera se despedia da cidade com festa e música, mas ela não podia sair dali. Finalmente encontrara o seu lugar. Ao mesmo tempo que ouvia seus amigos em festejos, se lembrava dos nomes que diziam os homens que procuravam por ela na Torre. E entristeceu-se. Não poderia continuar lá. Tinha de seguir com a trupe.
E a cigana partiu. Com o coração na mão e a lembrança doce do carinho de seu Tocador de Sinos.

A moça do vestido de flor

Não vejo a hora de te ver passar por mim, distraída, com os cabelos longos soltos ao vento, o vestido florido esvoaçante e o sorriso encantador que me tirou os pés do chão desde a primeira vez que eu vi.
Não, você não sorriu pra mim sequer uma vez, nem sabe da minha existência, mas meu coração vive aos saltos na esperança de te ver passar do outro lado da rua novamente.
Não sei onde você mora, de onde vem nem pra onde vai, sei que enfeitou meu dia ao dobrar a esquina no meio da tarde, quando eu olhava de esguelha o movimento na praça.
Fiquei paralisado com tanta suavidade que passava por mim, como brisa a me beijar os olhos lentamente.
Não quis saber de mais nada que não seus olhos verde-esmeralda e sua pele cor de jambo que me enfeitiçaram.
Não vejo a hora de te ver passar por mim com seu sorriso encantador que me tirou os pés do chão.

A morte numa taça

Injustiça.
Acusam-me erroneamente de um crime que cometi. Assumo, sou culpado. Mas as acusações são infames!
Carrego a culpa de trazer comigo a luz dos deuses e partilhá-la. Sou acusado de causar trevas ao partilhar a minha luz.



Injustiça! Infâmia!
Devolvam-me o direito à luz.
Não me permitiram defesa, amarraram-me pés e mãos, calaram minha voz, trouxeram-me a morte numa taça e bebi. Envenenei-me de sabedoria e a luz ofuscou-me as vistas.

(quadro A Morte de Sócrates, por Jacques-Louis David)